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"PELAS MINORIAS, CONTRA O RACISMO”

(Jaime Rocha, Homem branco homem negro, Lisboa, SPA/D. Quixote, 2006, 88 pp.)
(in Sinais de cena n.º 8, Dezembro de 2007. Pp.109-110)

Ana Campos

A obra de Jaime Rocha, pseudónimo literário do jornalista Rui Ferreira e Sousa, reparte-se pela prosa – Os dias de um excursionista (1996), A loucura branca (1ª ed. 1990; 2ª ed. 2001)), pela poesia (Os que vão morrer (2000), Zona de caça (2002), Do extermínio (1ª ed. 1995; 2ª ed. 2003) - e pelo teatro[1] (com várias peças já representadas como Casa de pássaros[2], Transviriato[3] e O jogo da Salamandra[4]).
Neste último modo, encontramos três tendências distintas: o teatro onde predomina a tensão psicológica, que podemos encontrar em peças como O Jogo da Salamandra (2001); o teatro do absurdo com claras influências de Samuel Beckett, Ionesco, Arrabal, entre outros autores – com quem Jaime Rocha afirma partilhar “sensibilidades e filosofias”, “a mesma procura da desconstrução, da falha desumana nos humanos” – em diversas obras como, por exemplo, O terceiro andar (1998) ou Descida para as cinzas – monólogo para uma actriz (2001) cuja protagonista nos lembra inevitavelmente Winnie de Os dias felizes; e, por fim, peças onde estas duas vertentes se confundem, como é o caso de Homem branco homem negro (2006).
Independentemente da tendência em que as peças se inscrevem, detectamos, na maioria das obras do autor, uma forte preocupação social, interventiva, uma procura da verdade para além das coisas. Entre as causas de grande actualidade que denuncia estão:  a situação dos presos políticos nos anos 60, em Seis Mulheres sob escuta – peça em dois actos para seis actrizes (1999) onde é abordada também, subtilmente, a questão da homossexualidade nas prisões; a solidão na 3ª idade na, já referida, Descida para as cinzas – monólogo para uma actriz, retomada com humor em Morcegos[5]; a dificuldade das relações afectivas entre sexos na contemporaneidade em O Jogo da Salamandra (2001) e ainda, com outros contornos, em Detalhe à porta do Inferno (2001); bem como os dolorosos laços familiares entre mãe e filha em Casa de pássaros (2001) – peça onde as tensões psicológicas atingem níveis de dramatismo que superam os da restante obra do autor; os preconceitos racistas e a hipocrisia politicamente correcta que os envolvem, em Homem branco homem negro (2006); a Guerra Santa em Azzedine (recente peça ainda inédita). A esta atenção à realidade do momento não é alheia certamente a longa carreira de jornalista do autor, a qual influencia também o estilo que o caracteriza.
Por vezes, no percurso teatral de Jaime Rocha, assistimos ainda a um revisitar de figuras carismáticas da literatura e da história universal com o intuito de lhes perscrutar a alma. É o que acontece com a figura de Jack, o estripador, em Homens como tu[6], bem como com o protagonista de Transviriato.
Talvez também por influência da sua carreira paralela de jornalista, a linguagem que utiliza, com grande ironia, é extremamente objectiva, totalmente depurada de todos os elementos acessórios, atacando as questões na sua essência, desnudando o seu pensamento, apresentando a crua realidade das situações, a espessura psicológica das personagens perante o olhar estupefacto do leitor/espectador. Os seus textos surgem cada vez mais desprovidos de didascálias, numa distanciação consciente entre o autor e a cena, embora este acompanhe sempre de perto as encenações, intervindo na dramaturgia apenas quando solicitado. O humor e ironia acutilantes, aliados a esta utilização certeira da linguagem, conseguem criar momentos hilariantes no meio de situações de grande tristeza e constituem a marca distintiva do seu estilo.
Em Homem branco homem negro, peça que concedeu a Jaime Rocha, em 2004, o Grande Prémio de Teatro Sociedade Portuguesa de Autores – Teatro Aberto e que levou em consequência à representação da peça pelo Teatro Aberto/Novo Grupo em Agosto de 2005, é criada uma situação absurda em que um Branco, activista contra o racismo que cola cartazes onde se pode ler “Pelas minorias, contra o racismo”, tenta incutir num Negro, perfeitamente integrado na sociedade, sentimentos de revolta contra os brancos, em geral, e contra os portugueses que cometeram atrocidades na guerra colonial, em particular. Desmascara-se, deste modo, o uso demagógico da negação do preconceito racista, tão cara a certa esquerda, para se revelar uma série de ideias feitas sobre os negros, advindas da vivência inevitavelmente traumática do passado colonialista e do complexo de inferioridade de uma baixa classe média preconceituosa e humilhada. Em última análise surge a crítica a um país de emigrantes que recebe de forma racista e xenófoba os estrangeiros que aqui procuram trabalho.
Considero, contudo, como nota, também, Rita Martins na sua crítica para o jornal Público de 24-08-2005, que a perturbação mental do Homem Branco (Horácio), gradualmente revelada ao longo da peça, e que leva a que o Negro (Joel) se revolte, não contra o racismo da sociedade portuguesa em geral, mas sim contra o daquele homem em particular, vem retirar alguma força à argumentação da tese que a peça defende. Ao se legitimar a atitude do Branco com uma alienação de causas objectivas, parece-me estar-se a limitar o carácter simbólico da peça. A utilização hipócrita das manifestações anti-racistas parece ser, assim, apanágio exclusivo de elementos da baixa classe média com algum tipo traumático de vivência da guerra colonial, quer directamente, quer através dos seus pais. Não será este, antes, o perfil dos membros dos grupos radicais de extrema-direita xenófoba e racista? O autor parece ter procurado criar uma personagem vítima de uma sociedade disfuncional, sobrecarregada de ideologia, que caiu numa alienação sem retorno.
É de uma forma subtil, através de diversas e veladas sugestões, que o crescendo racista do activista se revela. Tem início pelo uso da forma de tratamento “tu” utilizada numa familiaridade abusiva, pois não lhe fora concedida, e justificada pelas suas convicções de esquerda. Acrescenta-se um pretenso paternalismo a que se seguem as pequenas insinuações:

Homem Negro – O meu avô fez-me sinal, chamou-me ao ouvido e disse-me: meu neto, tu és um homem livre, nunca te esqueças, tu és um homem livre, não deixes que cortem as tuas duas árvores. E morreu.
Homem Branco – Um homem livre! Vê-se. Com uma casa destas e só com quatro canais! Vê-se. Com uns míseros 400 euros por mês. Nem dá para uma viagem a África, ida e volta. Devias ir era para a Alemanha, para a Suécia, isso sim, são países.” (p .39)

O Homem Branco prossegue na revelação dos seus reais sentimentos em relação aos negros através de suposições onde o racismo está latente, como, por exemplo, ao desconfiar se o Negro saberá, de facto, ler; através ainda de relatos da vivência da guerra do seu pai e dos crimes terríveis aí cometidos, destruindo por completo a ideia do bondoso colonizador português. Surgem, nesta linha de pensamento, episódios que raiam o caricato quando, por exemplo, o Branco decide despedir a empregada negra, contratada, contra a sua vontade, pela mulher, por não querer escravos na sua casa.
Apesar de a intriga ser extremamente simples, o texto faz-se valer de um diálogo vivo, intenso, com um sagaz registo dos tiques linguísticos da baixa classe média pseudo-intelectualizada e com pretensões humanitárias, em Horácio, e do português operário sem grandes ambições, para além da pacatez da sua vida rotineira entre os dois empregos e a família, em Joel.
Curiosamente, à medida que se adensa o conflito entre o descontrolo emocional do Branco racista e a revolta do Negro integrado (que recusa as invectivas do Branco), desenvolve-se também um laço de amizade entre os dois homens. E talvez essa amizade possa ser a solução para este fosso racial que a guerra colonial parece ainda hoje – pela memória – criar. A peça termina com uma feroz luta entre ambos, da qual se alguém sai vencedor é a amizade.

HOMEM NEGRO – Vá, se és homem, corta-me. Tens aqui o meu peito.
HOMEM BRANCO – Mas eu sou teu amigo. (p.82)

Bibliografia do autor (peças publicadas)

1988: Deuscão, O televisor
1998: O construtor, Quinze minutos de glória, O terceiro andar
1999: Seis mulheres sob escuta (2.ª ed. 2001)
2001: Casa de pássaros, Transviriato, O jogo da salamandra, Descida para as cinzas, Detalhe à porta do Inferno
2006: Homem branco, homem negro, 2006.

[1] Quando não se mencionam espectáculos, as datas das peças referem-se à publicação em livro.

[2] Teatro Experimental de Cascais, 2001.

[3] Trigo Limpo Teatro, 2001.

[4] Comuna-Teatro de Pesquisa em co-produção, 2001.

[5] O Bando, 2006.

[6] Peça não publicada, representada pelo Útero-Associação Cultural em 2004.