Lisboa, Edições Cotovia, 2001
Maria Helena Serôdio
«”Forçado a percorrer a estrada onde entrei sem saber, como dela sairei sem o querer, junquei-a de tantas flores quanto a minha alegria me deixou” (...) Esta é a imagem da vida em que eu me reconheço (...) uma estrada que passei o tempo a juncar de flores mas de que um dia serei forçado a sair»[1]
ÍNDICE
Introdução p. 11
Iniciação ao teatro pelas razões da vida p. 27
Teatro da Cornucópia: “desmesuradamente fiel” a um projecto p. 53
Uma poética de cena p. 91
O difícil amor pelo público p. 95
Interpelar o tempo, reler a história p. 107
A sequência literária na construção de um repertório p. 129
- Do cómico e da comédia: entre as regras da arte e o sonho de uma vida maior p. 132
- O universo trágico:sofrimento e saudade da transcendência p. 153
- Um cânone português p. 162
Uma outra arquitectura do mundo p. 187
A razão interpretativa p. 205
A margem do desejo p. 231
Outras formas de dizer e figurar p. 241
Anexo documental p. 255
Dados biográficos
Curriculum artístico no teatro e na ópera
Encenou (*e interpretou)
Interpretou
Outras funções criativas
Dramaturgia
Cenografia
Figurinosinos
Banda sonora
Desenho de luz
Recitais
Filmografia
Discografia
Bibliografia
Bibliografia activa
Textos nos programas de espectáculos
Textos em livros e em periódicos
Traduções, adaptações
Conferências e discursos
Principais entrevistas
Bibliografia crítica
Monografias
Capítulos de livros
Artigos em periódicos
Trabalhos universitários
Conferências
Teatrografias
Outros prémios atribuídos ao Teatro da Cornucópia e a trabalhos relacionados com LMC
Índice remissivo
Créditos fotográficos
Introdução
A história do teatro é um cálculo de sucessivos enfoques sobre um assunto que se torna cada vez mais impreciso.
A coisa que nos move está à beira do desaparecimento. Dentro ou fora da perspectiva, estamos sempre no ponto de fuga.
Herbert Blau[2]
É neste ponto de fuga, nesta exacta zona de instabilidade - relativa não apenas à evanescência do facto teatral, mas também à inconstante relação do olhar - que se inscreve a razão maior deste livro.
Em grande parte porque eu julgo que a aporia a que se refere Blau não inibe antes desafia a uma incessante interrogação a colocar ao teatro que se vai fazendo entre nós, não apenas para registar os factos artísticos na sua específica materialidade cénica (o que já é importante), mas também para indagar dos modos como por ele se engendram, circulam e disseminam – na cultura e na vida - sentidos, comportamentos e valores. Refiro-me, entre outros aspectos, aos universos simbólicos que o teatro movimenta, às interpelações que tece ao momento histórico, às reflexões críticas que suscita, à confrontação estética que activa entre as diversas formações teatrais, aos afectos e valores que mobiliza, aos modelos que promove.
Com efeito, o teatro, no seu «fazer» social e artístico, opera sobre materiais representacionais que, de algum modo e ao longo dos tempos, vêm cartografando o nosso imaginário e modulando a nossa sensibilidade. Isso ocorre quer numa relação imediata no que diz respeito a espectadores habituais do teatro, quer por processos mediatizados que do teatro procedem até a um público mais vasto através da televisão, do cinema, de outros circuitos artísticos (como a fotografia, as artes plásticas, a música, a dança), da publicidade ou mesmo através da leitura de críticas ou notícias de imprensa. Essa relação imediata e esses processos de mediação reportam-se a figuras mais destacadas do mundo do teatro, mas também se reportam a espectáculos que marcaram um tempo, a instituições - como companhias, festivais ou fundações - que criam os contextos favoráveis ao aparecimento e disseminação desses aspectos, bem como a casas de espectáculo que se tornaram lugares de memória. E assim, nessas múltiplas frentes, se apresenta o teatro numa movente reconfiguração de cenários, de ficções, de tempos, de presenças e de vozes que se vão insinuando na cultura que se entretece diariamente.
Estudar o teatro nesta perspectivação estética e cultural é um programa de pesquisa e análise que está quase todo por fazer entre nós. Em parte porque é uma realidade complexa e vasta, feita de várias disciplinas artísticas, e que deverá ser examinada num espaço e tempo alargados; em parte também porque exige múltiplos saberes, concita várias metodologias e requer lugares de exercício para essa investigação, sejam eles a academia, a publicação periódica ou o universo editorial. E em rigor, para ser cumprida, terá de contrariar uma certa menorização que geralmente é atribuída ao teatro quando ensaístas, historiadores e outros intelectuais procedem à avaliação da criação cultural no mundo de hoje.
Este será, então, um livro que, de forma muito particular, procura pôr em marcha algumas das formas de inquirição atrás referidas para interrogar o teatro que Luís Miguel Cintra vem protagonizando na companhia que dirige desde a sua fundação em 1973 - o Teatro da Cornucópia -, primeiro em colaboração com Jorge Silva Melo (até finais dos anos 70), e depois com Cristina Reis.
Para proceder a essa inquirição são aqui convocadas as ideias que ele foi expondo em textos publicados nos programas a propósito dos espectáculos que encenou e em vários outros dizeres dispersos por entrevistas e escritos de circunstância. Ao facultar aqui reunidas muitas das suas opiniões, a ideia é a de perceber por palavras próprias a sua concepção de teatro (e da arte em geral), bem como o percurso que foi traçando na cena teatral e discursiva, para se confrontarem essas suas formulações com as memórias (também minhas) dos espectáculos feitos.
Dos trabalhos cénicos que fez em co-autoria (sobretudo com Jorge Silva Melo[3]), e dos textos que assinou também enquanto parte de um colectivo pouco se dirá, o que, de algum modo, pode distorcer a imagem da companhia sobretudo nos seis anos - de 1973 a 1979 - em que a direcção artística ainda se repartia entre Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. Mas a verdade é que este estudo se centra nas propostas teatrais de Luís Miguel Cintra, o que obriga à selecção de um corpus, mesmo admitindo que, após a saída de Jorge Silva Melo, houve momentos em que a autoria dos espectáculos se repartiu com Cristina Reis e com ela também LMC partilhou a responsabilidade da direcção da companhia. Mas a verdade é que, mesmo nos casos mais emblemáticos da assunção de uma co-autoria - como em A missão, sobre texto de Heiner Müller - é sempre LMC quem assina os textos de apresentação e subscreve a análise e a discussão dos trabalhos cénicos propostos. E quanto ao seu lugar na história da companhia, já LMC admitiu que terá havido uma primeira e uma segunda Cornucópia[4], deduzindo-se que o marco terá sido naturalmente a saída de Jorge Silva Melo.
Poder-se-á dizer, como o fez Giorgio Strehler, que «o homem de teatro só se exprime fazendo teatro»[5] e que «o teatro não é para ser contado, nem teorizado, nem ensinado a não ser pelo teatro e, fundamentalmente, no teatro».[6] Mas, como o encenador italiano também compreendeu, «a nossa época reclama incessantemente o reenvio do olhar sobre si próprio e mesmo a coragem (...) de fixar o teatro por palavras, fotografias (...) ou por filmes para televisão, que têm essa característica comum de fixar impiedosamente ou arbitrariamente, por meio de um enquadramento, uma “paragem móvel”, um instante de vida e de teatro».[7]
A citação de textos declarativos de Cintra servirá, então, para registar momentos de um processo teatral que, sendo embora colectivo (de uma companhia, a que sempre foi «desmesuradamente» fiel), emerge na voz de um dos encenadores portugueses que, de forma mais lúcida, consistente e problematizadora, tem procurado formular uma ideia própria de teatro e, de um modo consequente, mais a tem experimentado em palco na dupla perspectiva da encenação e interpretação.
Todavia, a intenção deste livro será não apenas a de citar ou parafrasear as suas afirmações no sentido de nelas descobrir a coerência de uma razão estética (ainda que em contínuo processo de reformulação, porque em diálogo com os diferentes tempos e repertórios), mas também para por elas surpreender eventualmente as linhas de fractura ou as súbitas iluminações que acompanham algumas das mais importantes contradições que a arte expõe, por esta ser, como diz Greenblatt, «um dos registos mais sensíveis dos conflitos e harmonias da cultura».[8] E contribuir para o conhecimento da afirmação artística de um conjuntura que ele também - e talvez superlativamente - constrói.
Mas, ao operar sobre os processos teatrais artisticamente praticados e teoricamente definidos por Luís Miguel Cintra, a problematização que aqui trago integra inevitavelmente a consciência da mobilidade permanente e da continuada radicação ao histórico e ao subjectivo de que fala Blau, ao mesmo tempo que declara que o objecto e o sujeito do conhecimento aqui visado estão mutuamente implicados e referidos a um caminhar paralelo em que, como poeticamente Manuel Gusmão definiu, «se desloca o horizonte e se move o sentido».[9]
Não se pretende, por isso, «congelar» procedimentos estéticos erigindo-os em doutrina fixa, mas sim perceber, na mobilidade dos tempos e na contínua reconstrução de uma identidade, os pontos axiais de um singular projecto artístico que, referido electivamente a Luís Miguel Cintra, aqui se procura expor. Para refazer o que Carlos de Oliveira noutro contexto tão expressivamente descreveu:
«O alicerce duma personalidade diferenciada. O talento, que modela a névoa interior, sílaba a sílaba, até lhe dar um rosto próprio».[10]
[1] Luís Miguel Cintra, «Este espectáculo», Programa de O casamento de Fígaro, 1999.
[2] Herbert Blau, Take up the Bodies : Theater at the Vanishing Point. Urbana: University of Illinois Press, 1982, p. 28.
[3] Refiro-me, sobretudo, à encenação de espectáculos como Terror e miséria no II Reich , de Brecht, Casimiro e Carolina , de Franz Xaver Kroetz, e Woyzeck , de Georg Büchner.
[4] Luís Miguel Cintra, «Este espectáculo», Programa de O casamento de Fígaro , 1999.
[5] Giorgio Strehler, Un Théâtre pour la vie: Refléxions, entretiens et notes de travail (1974). Paris : Fayard, 1980, p. 16 (traduções minhas).
[6] Ibid., p. 17.
[7] Ibidem.
[8] Stephen Greenblatt, Renaissance Self-Fadshioning: From More to Shakespeare (1980). Chicago & London : The University of Chicago Press, 1984, p. 5.
[9] Cf. Manuel Gusmão, Mapas o Assombro a Sombra . Lisboa: Caminho, 1996, p. 39.
[10] Carlos de Oliveira, O aprendiz de feiticeiro . 3ª edição, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1979, p. 71.