Maria João Brilhante
Centro de Estudos de Teatro
1. O estudo da iconografia teatral
A história do teatro é a história de uma prática que só existe em documentos e na memória de quem participou na representação teatral. Daí que a representação visual de uma acção teatral não seja nunca comparável à própria acção - acontecimento de natureza audio-visual - mas à recordação que o artista dela guardou. As imagens não servem, pois, completamente ao historiador do teatro para reconstruir uma acção teatral. Tanto mais que os códigos envolvidos na criação visual não coincidem integralmente com os que, na sua tridimensionalidade, a arte do teatro convoca.
Todavia, o artista que procura fixar um momento do continuum espacio-temporal que a acção teatral é inscreve-se num contexto socio-cultural e num universo de valores idênticos aos da criação teatral. A imagem permitirá ao historiador do teatro desvendar a natureza do sistema que enquadrou o artefacto visual e a representação teatral. Tendo em conta a especificidade das condicionantes de criação nas duas artes, é possível inseri-las no campo mais vasto da recepção artística.[1]
Assim, as imagens não constituem meras ilustrações da realidade teatral (da sua arte e da sua especificidade no interior das práticas simbólicas), mas criações individuais que figuram uma cultura teatral: dizem-nos, por exemplo, quais os usos e funções dessas imagens, qual a ideia de teatro que encerram mesmo quando nada têm a ver com a prática teatral (caso da maioria das ilustrações nos impressos de teatro). O material iconográfico deve, pois, desempenhar um papel central e não periférico ou suplementar na história do teatro.
A iconografia teatral constitui, aliás, uma área de estudo em expansão que visa a recolha e análise de informação histórica sobre teatro a partir de material visual. Deve ser entendida na sua dupla vertente de disciplina que estuda as imagens e os seus sentidos e de colecção de imagens entendidas como fontes históricas para a investigação da arte do teatro.
Constitui necessariamente um campo de intersecção de diferentes disciplinas cada uma com os seus recursos e métodos próprios: história de arte, história do espectáculo, estudos literários, musicologia, antropologia, sociologia. O estudo das imagens tem de recorrer à interdisciplinaridade pois não é possível interpretar o sentido de uma imagem ou dela retirar informação para a história do teatro sem a considerar no contexto das formações sociais. A antropologia, por seu turno, incidindo sobre o conceito de teatralidade, facultará métodos de análise das convenções e códigos de inscrição dessa teatralidade em imagens.
Existem limitações (não só técnicas) àquilo que um artista pode representar e ao modo como o fará num dado momento histórico. Merece, pois, atenção a relação entre as artes do espectáculo e as artes visuais pois é indubitável o papel destas últimas na transmissão de informação que intervém em última instância na própria prática teatral. O campo das artes visuais com os seus modelos, temas, técnicas, padrões culturais permite abordar o teatro e as várias formas de espectáculo de uma perspectiva visual e não como até aqui exclusivamente literária. Permite sobretudo uma diferente relação entre a palavra escrita e a imagem de teatro, suscitando esta uma interpretação semântica autónoma e não a mera confirmação do sentido do texto escrito. Há que distinguir de entre os materiais que chegaram até nós os documentos visuais que emanam da produção teatral (cenários, desenhos de figurinos) e os documentos que se referem à prática teatral, que são representações dessa prática, fixação a posteriori (retratos de actores, gravuras ou fotos de cena, ilustração de interiores de teatro). Cesare Molinari[2]propõe três grupos de documentos iconográficos: os directos, raros e de fiabilidade duvidosa (registos fotográficos e video); os indirectos, que são em maior número e aludem à prática teatral; e os que transmitem uma concepção de teatro, embora raramente associada a um acontecimento teatral preciso.
É também variado o tipo de suporte das imagens de teatro: pintura em vasos, ilustrações em manuscritos e impressos, desenhos, gravuras, fotografias, videos. Esta diversidade de suportes tem implicações que devem ser consideradas no estudo das representações imagéticas: são diferentes as convenções e os condicionalismos de produção impostos pelos materiais.
Acondicionadas ao seu suporte e à codificação que lhe é própria, as imagens de teatro constituem documentos fundamentais na ausência das representações teatrais que lhes deram origem. São, de modos diversos, testemunhos de concepções, acções e recepções do teatro num certo momento histórico.
Grande parte da investigação feita em países como a França, a Grã-Bretanha, a Itália, a Alemanha visou até agora o reconhecimento e identificação de imagens de teatro, nas duas vertentes assinaladas, o que está longe de ser a situação do estudo da iconografia teatral no nosso país. É urgente recensear e classificar o material existente antes de partir para o confronto com a realidade iconográfica europeia e para a identificação das áreas onde, por cá, escasseiam os materiais (retratos de artistas, representação de representações e interiores de teatros, por exemplo). A análise dos dados será então possível com margem de erro, generalização ou invenção controlada.
Um dos programas de que se ocupa o Centro de Estudos de Teatro[3] visa o recenseamento e o estudo de imagens de teatro em Portugal. Existe um banco de imagens do século XVI ao século XVIII relativas a Portugal, coleccionadas por Osório Mateus e em vias de tratamento informático, que será aumentado e estudado de forma a permitir cruzar informação com os documentos escritos que constituem as fontes para a história do teatro em Portugal. O corpus já identificado inclui imagens de teatros, cenários, actores, músicos, plantas de teatro, figuras, representação de representações teatrais. A aparente escassez de imagens se compararmos com outras culturas europeias não invalida a importância do material iconográfico disponível e a sua oportunidade para o estudo do teatro em Portugal. Em geral, completa ou esclarece informação que nos chegou através de documentos escritos e permitirá, no futuro, traçar os contornos sociais, ideológicos, estéticos da arte do teatro até ao início do século XIX. A própria questão dos critérios estéticos e ideológicos subjacentes à representação imagética do teatro poderá ser estudada através deste material específico, revelando, como já vêm mostrando historiadores de arte como Martine de Rougemont, Maria Inès Aliverti, entre outros, a existência de condicionantes, modelos e estratégias.
2. Um decorador exemplar
A actividade do arquitecto decorador durante o século XVIII em Portugal não está ainda satisfatoriamente estudada. Existe na Biblioteca Nacional e no Museu Nacional de Arte Antiga material iconográfico que permite conhecer melhor essa actividade. Trata-se de um conjunto de desenhos atribuídos "à casa" de Inácio Oliveira Bernardes e de um outro de que fazem parte estudos cenográficos de famosos arquitectos da família Bibiena. Podem servir de ponto de partida para a análise de dois aspectos que se prendem com a prática cenográfica em Portugal, no reinado de D. José I: a definição profissional do arquitecto decorador e a caracterização estética e técnica dos cenários. O papel da cenografia no teatro de corte de 1760 em diante poderá ganhar contornos mais claros e distintos já que só a actividade de Giovanni Carlo Bibiena, a trabalhar para o rei entre 53 e 60, merecera até agora alguma relevância entre nós.[4]
Representante de uma linhagem de arquitectos decoradores espalhados pelas cortes da Europa e primeiro em Portugal a receber do rei a tarefa de adaptar e criar no Paço da Ribeira e no de Salvaterra de Magos (1753) espaços teatrais apropriados à realização das óperas italianas de sucesso europeu, Bibiena deixará testemunhos iconográficos do seu trabalho e da escola bolonhesa a que pertence (cf. imagens A, B, C). O mesmo se não pode dizer de outros estrangeiros que trabalharam em Portugal ou de artistas nacionais a quem documentos atribuem essa actividade, mas da qual não chegaram vestígios iconográficos até nós. Casos de Baccarelli, Colonelli e até Servandoni, assim como de Simão Caetano Nunes e Pedro Alexandrino de Carvalho.
Inácio de Oliveira Bernardes parece ser o único outro exemplo de um arquitecto e pintor que desenvolveu uma actividade de cenógrafo na corte (palácios de Ajuda, Salvaterra e Queluz) de forma regular e durante um tempo considerável (1760-1767). A existência de documentos iconográficos comprovando-a é, por isso, significativa e permite mesmo conceber a actividade como começando, por essa altura e sem dúvida em consequência do prestígio de Bibiena, a emergir com alguma autonomia do campo da arquitectura e da pintura. Sabemos que depende técnica e artisticamente dessas outras duas artes, mas a especificidade dos saberes que a cenografia já acumulou leva com D.José e os seus teatros de ópera à criação do cargo, logo, da profissão especializada e paga, exercida por um arquitecto e pintor.
Vejamos quem foi Inácio Oliveira Bernardes. Sabe-se através do seu contemporâneo Cirilo Wolkmar Machado que nasceu em Lisboa, em 1695, filho do pintor de azulejos António de Oliveira Bernardes. Inicia-se cedo na pintura e em 1718 pertence já à confraria dos pintores, a Irmandade de São Lucas. Ingressa na Academia Portuguesa de Roma, em 1720, e aí aperfeiçoa a sua técnica na arquitectura e na pintura. Será nestas duas áreas que trabalhará, uma vez regressado a Lisboa, colaborando no risco da igreja de S. Francisco de Paula e do palácio de Queluz e deixando obra pictórica em igrejas e conventos, existindo testemunhos no Paço em Mafra e na Igreja do Menino Deus em Lisboa.
Como arquitecto decorador, a sua actividade desenvolveu-se sobretudo depois da morte de Bibiena, ocorrida em 1760, embora o seu nome andasse já antes ligado aos teatros dos Congregados do Espírito Santo e da Rua dos Condes. Entre 1760 e 1767 deve ter sido o único cenógrafo da corte, pois Giacomo Azzolini, que acabará por lhe suceder no cargo de «Arquitecto inventor das scenas» (Ayres, 1977: XXIX), se encontrava a trabalhar em Coimbra para onde fora após o terramoto. A partir de 67, terão talvez colaborado na realização de festas e teatros para a corte (despesas de construção de um teatro desmontável nos jardins do palácio de Queluz documentam intervenção de Inácio de Oliveira). O pintor estará ainda activo em 1780, dirigindo a Academia do Nú, com Cirilo e Vieira Lusitano morrendo no ano seguinte.
A colecção da Biblioteca Nacional inclui cinquenta e sete esboços cenográficos atribuídos a Inácio de Oliveira. Nem todos encerram informação suficientemente clara para que possam ser ligados a uma acção teatral precisa: isso acontece apenas com sete desenhos a que é preciso acrescentar quatro pertencentes à colecção do Museu Nacional de Arte Antiga. Dos restantes não sabemos dizer que relação estabelecem com a prática teatral, mas é de crer que possam ter sido utilizados ou preparados para utilização, visto encerrarem temas arquitectónicos (a "scena regia") e motivos de decoração (nichos, bustos, varandas, colunas, medalhões) recorrentes nos programas de cenografia barroca para as óperas produzidas nas cortes europeias.
Apesar destes traços comuns que mostram o conhecimento que Inácio Oliveira Bernardes possuía dos modelos estéticos barrocos (a perspectiva per angolo, por exemplo, mas também a tópica arquitectónica da escola bolonhesa), alguns dos seus desenhos correspondem possivelmente a soluções pessoais a partir de condicionantes ditadas pela acção dramática e pelas indicações cénicas incluídas nos libretos de Goldoni e Metastasio, pelo espaço (as disponiblidades técnicas dos teatros adaptados por Bibiena nos Paços) e recursos económicos para a realização (frustrada que fora, pelo terramoto, a criação de um grande teatro, a efémera Ópera do Tejo, apetrechado para a ópera italiana), pela adaptação da estética barroca a novas tendências proto-românticas (ruínas, pobreza dos espaços representados).
Que podemos dizer, hoje, destes materiais iconográficos no que respeita à sua função e uso e que conseguem eles próprios dizer-nos acerca da concepção de teatro da época? Se bem que se trate de um estudo ainda por fazer, é, todavia, possível apontar direcções para pesquisa. Algumas destas imagens mostram ser instrumentos de trabalho, daí apresentarem-se incompletas (a simetria dispensava o acabamento). Os esboços existem para serem usados pelos colaboradores do arquitecto decorador aos quais caberá executar os cenários para as várias cenas e as indicações por vezes em italiano (tornada língua internacional da ópera, pelo menos a partir deste século) relativas ao tipo e quantidade de materiais a utilizar comprovam-no[5].
Apesar de serem considerados por Goulart de Melo Borges (1994: 14) como "correspondendo às exigências dos libretos e do público", exclusivamente dependentes da função a que se destinavam - concretizar o espaço para a acção prevista no texto - estes desenhos ultrapassam o imediato utilitarismo para constituirem um corpo de referências artísticas e técnicas, um saber específico no interior das artes da cena. A invenção de espaços para os textos de Goldoni é apenas uma das revelações produzidas pelos desenhos; eles revelam também os modelos especificamente teatrais a partir dos quais se constituem: por exemplo, que dinâmica do olhar domina no teatro régio no que toca aos usos do espaço cénico. Deu-se o caso de terem sido preservados estudos cenográficos através dos quais um criador ensaiou e fixou, em Portugal, na segunda metade do século, a sua contribuição para a já longa arte de criar o espaço cénico. Árduo se afigura o caminho até que este e outros conjuntos de imagens nos permitam generalizar acerca das funções, dos usos e do sentido dessas imagens, assim como dos modos de funcionamento da cenografia em Portugal, isto é, de como se praticava e de como era recebida na corte e nos teatros públicos.
O confronto sistemático entre sa pintura de Inácio de Oliveira e os seus desenhos talvez deixe ver em que inovam face ao horizonte estreito da sua pintura, feita a partir de estampas. Quanto aos ainda existentes jardins que construiu para o antigo palácio Devisme, eles não diferem assim tanto daqueles que o arquitecto desenhou para as cenas dos teatros régios, com cascatas formadas por rochedos, bustos, cabeças de leões ou golfinhos vertendo água, chafarizes, estátuas e ciprestes e que cumprem o propósito lúdico do jardim barroco (Ana Cristina Leite, 1995). Alguns estudos inscrevem uma ideia de representação da natureza como espaço de diversão, mas há que ver se essa representação obedece a canones idênticos em pintura e no teatro. Será preciso comparar estudos cenográficos representando jardins e esboços para projectos de jardim saídos da mão de Inácio Oliveira Bernardes para encontrar os mesmos elementos arquitectónicos e decorativos (terraços, balaustradas, fontes, estátuas), assim como outros que Paulo Varela Gomes (1986: 31) classifica como proto-românticos (ruínas, paisagem rural) e cuja referência é nitidamente pictórica.
Estes desenhos cenográficos poderão dizer-nos que ideia de teatro circulava no espaço cultural da corte. Até que ponto a arte de Inácio de Oliveira Bernardes captou e alimentou um redimensionamento da cena depois do luxo e da magnificência barrocas à maneira dos Bibiena, nos primeiros anos do reinado de D. José I. As orientações económicas decorrentes do terramoto e da acção política do marquês de Pombal por um lado, a estabilização das práticas teatrais nos teatros públicos com um previsível alargamento da audiência e dos modelos estéticos por outro ajudarão, por certo, a entender características do contributo artístico de Inácio de Oliveira. Somos tentados a afirmar que a vertente arquitectónica da cenografia cede, em alguns casos, terreno à pintura, mas seria preciso estudar o funcionamento previsto para cada cenário e as condições de realização cénica em teatros hoje desaparecidos, antes de concluir relativamente a uma alteração nas expectativas visuais do público da corte, porventura menos atraído pelas mutações surpreendentes e pela sumptuosidade dos materiais.
BIBLIOGRAFIA
Christopher Balme, 1997, "Interpreting the Pictorial Record: Theatre Iconography and and the Referential Dilemna", Theatre Research International volume 22 number 3 Autumn (pp.190-201)
Artur Goulart de Melo Borges, 1994, "Inácio Oliveira Bernardes arquitecto decorador dos Teatros régios", Doutor Carlos Goldoni venezizno, posto em gosto portuguez, catálogo da Exposição documental e iconográfica no Museu de Évora.
Ayres de Carvalho, 1977, "Introdução historico-artística", Catálogo da Colecção de Desenhos. Lisboa: Biblioteca Nacional (pp.IX-XXXI)
José Augusto França, 1983, Lisboa Pombalina e o Iluminismo. Lisboa: Bertrand
Paulo Varela Gomes, 1987, O essencial sobre a Arquitectura barroca em Portugal. Lisboa: INCM
Ana Cristina Leite, 1995, "Alegorias do Mundo: a arte dos jardins", História da Arte Portuguesa, vol.3. Lisboa: Temas e Debates (pp. 207-231)
Cirillo Volkmar Machado, 1922, Colecção de Memórias (Lisboa, 1823). Coimbra
José Fernandes Pereira, 1995, "O Barroco do século XVIII", História da Arte Portuguesa, vol.3. Lisboa: Temas e Debates (pp. 133-147)
Gustavo de Matos Sequeira, 1933, Teatro de outros tempos. Lisboa
[1]Maria Ines Aliverti, 1986, Il ritratto d'attore nel Settecento francese e inglese. Pisa: ETS. Estuda a interacção que acontece entre a arte do retrato, no contexto das pinturas de género e de história, e o acto "moderno" de retratar actores.
[2]Citado por Christopher Balme (1997), este texto consiste numa comunicação não publicada e apresentada em 1991 numa conferência promovida pelo Istituto Internazionale per la Ricerca Teatrale.
[3] Unidade de investigação da Faculdade de Letras e da Fundação para a Ciência e Tecnologia, criada em 1994.
[4]Consultar para conhecimento desta iconografia os seguintes catálogos: Ayres de Carvalho, 1977, Catálogo da Colecção de Desenhos,. Lisboa: Biblioteca Nacional; Doutor Carlos Goldoni veneziano, posto em gosto portuguez, exposição documental e iconográfica no Museu de Évora, Março/Abril 1994; Desenhos dos Galli Bibiena, Arquitectura e Cenografia, Catálogo da Exposição no Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa: 1987
[5] No estudo cenográfico para "Le Vicende della Sorte" (MNAA - inv.1788) lê-se: 1 Pano de fundo todo novo/6 Nuvens transparentes/7 Peças praticáveis ou bastidores/10 laterais de bosque que já temos; e no estudo para "L'Amore Contadino" a legenda em italiano é a seguinte: F L'Amor contadino Scena 2ª Atrio villaregio che introduce al rustico Albergo di Timore.