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Editorial
Foi para muitos de nós uma revelação admirável a primeira encenação que Augusto Boal assinou em Portugal, em 1977, ali na Avenida Alexandre Herculano (sede então da companhia portuguesa a Barraca): Barraca conta Tiradentes. Chegara a Portugal nos anos em que a ditadura no Brasil o obrigara ao exílio (desde 1971) e trazia consigo o saber e a arte que o Teatro Arena, de São Paulo, desenvolvera, em torno de Gianfrancesco Guarnieri e dele próprio, na segunda metade dos anos 60, com os musicais de inspiração brechtiana mas adequados à realidade histórica e artística do Brasil: Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes(1967).
O nome de Boal e a sua obra (em cena e nos seus escritos) já eram conhecidos de alguns, mas esse foi o momento da sua revelação ao grande público português: propunha uma maneira inteligente de pensar e fazer teatro, aparentemente simples, mas de uma extraordinária força artística. Não foi, infelizmente, longa a sua estadia entre nós, mas tornou-se uma referência artística para muitos.
Chegou-nos agora a notícia da sua morte, aos 78 anos de idade. No seu legado artístico deixa criações inesquecíveis, livros de trabalho e de memórias, e muitos ensinamentos práticos e teóricos que são seguidos em muitas partes do mundo. Criou e deu conteúdo – artístico e político – a projectos como o “teatro do oprimido”, o “teatro legislativo” e o “teatro invisível”, entre outros.
E numa última intervenção pública – tão internacional como era já a sua vida e obra – deu forma à mensagem do Dia Mundial do Teatro que o Instituto de Teatro Internacional assegura anualmente e que lhe pertenceu, de pleno direito, em 2009. Nela enunciou, uma vez mais, partes de um credo que foi, com ele, uma activa fermentação teatral: “Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com as nossas mãos, entrando em cena no palco e na vida”. Para ele, e como sublinhava na sua mensagem, a verdade escondida, que é o teatro, permite mostrar o que é ainda o mundo para além das aparências: “opressores e oprimidos em todas as sociedades (…) o mundo injusto e cruel”. Como dizia ainda, “Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver, tão habituados estamos apenas a olhar”, porque o que “nos é familiar [se] torna invisível” enquanto que “fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida quotidiana”. E, apelando a uma maior consciência e intervenção cívica, Boal declarava na sua mensagem ao mundo: “actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!”. E estes são tópicos de um pensar a que não falta actualidade flagrante.
É nesse reconhecimento – ou reivindicação – de “iluminar o palco” do teatro e da vida que baseamos muito do trabalho desta nossa revista Sinais de cena, interpelando esse fazer artístico e procurando as suas razões e consequências. E, assim, neste número celebramos os que foram distinguidos pelo Prémio da Crítica 2008 e que pudemos reencontrar no belo Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal em sessão festiva em Março passado: foi, desta vez, João Brites, que se destacou no ano passado com a sua criação Saga – Ópera extravagante, entre outros dos seus trabalhos inventivos no seio d’O bando, cabendo, entretanto, as Menções especiais a Carla Galvão, Nuno Cardoso e Miguel Loureiro pelas suas inspiradas criações como intérpretes ou encenadores. A todos eles dedicamos o “Dossiê temático” deste número, explicando as razões do júri da APCT, enquanto a secção “Na primeira pessoa” nos traz a voz e a memória de Carmen Dolores, uma actriz que protagonizou momentos decisivos do teatro em Portugal, mas que se repartiu por outras artes (rádio, cinema e televisão) e por intervenções de alcance não só artístico, mas também social e cívico. À entrevista acrescentamos, em pré-publicação, um dos textos sobre o público que integra o seu segundo livro de memórias (que irá, a seu modo, prolongar o seu Retrato inacabado, de 1984).
Entretanto, a questão da violência no teatro continua a ocupar a atenção nos “Estudos aplicados”, que recolhem mais três das comunicações que se apresentaram em Sófia, na Bulgária, no 24.º Congresso da Associação Internacional de Críticos de Teatro (que recordámos no número anterior com uma mais extensa lista de comunicações) e que nos falam dessa problemática no Japão, Bulgária e Argentina. Entre as “Notícias de fora” vêm contribuições que trazem até nós realidades artísticas de Wroclaw, na Polónia (mostradas no âmbito do Prémio Europa para o Teatro), de Goa (em inesperados diálogos interdisciplinares), de Praga (com o grupo Farm in the Cave), do Canadá (no encantamento de um teatro de pequenas coisas animadas) e ainda de outros lugares onde se desenham formas de vida e experiências de teatro (como Buenos Aires e Brasil, por exemplo).
Se a secção “Em rede” nos fala das virtudes da Internet para servir a relação de companhias de teatro com os seus públicos, ou entre si – no trabalho que desenvolvem longe dos grandes centros urbanos –, é das razões da presença em palco que os “Passos em volta” nos advertem: falando de Warlikowski (um dos premiados do Prémio Europa para as Novas Realidades em 2008), bem como de espectáculos do Teatro da Cornucópia, do Teatro da Trindade e dos dois Teatros Nacionais no momento em que se apresentam com renovadas direcções: o Teatro Nacional D. Maria II, com Diogo Infante como Director Artístico, e o Teatro Nacional S. João, agora dirigido por Nuno Carinhas. E é para recordar alguns momentos importantes da passagem de Ricardo Pais pelo TNSJ, que agora deixa, que o “Portefólio” nos traz uma impressiva colecção de imagens de espectáculos na perspectiva fotográfica de João Tuna.
As “Leituras” integram uma incursão analítica ao universo dramatúrgico de Hélia Correia, interrogam a relação entre o Teatro e a escola, recenseiam a publicação pelo Museu Berardo do roteiro de uma exposição sobre “teatro sem teatro” e, como ocorre sempre no mês de Junho, apresenta a lista das publicações de teatro saídas a lume em Portugal no ano passado. Completa-se a visitação das letras no “Arquivo solto”, com as reflexões de Luiz Francisco Rebello a propósito da relação entre Eça de Queiroz e o teatro, na reversibilidade que a conjunção autoriza, e que Sebastiana Fadda documenta na lista de espectáculos com que termina a secção.
Resta-nos agradecer não apenas aos colaboradores, que entusiasticamente se dispuseram a trabalhar para mais este número da revista, mas também ao Teatro Nacional São João, pela publicidade que aqui se inclui, e ao Instituto Camões, pelo efectivo apoio que nos prodigaliza. Mas um agradecimento muito especial vai também para todos os que tão generosamente nos apoiam em tudo o que vamos precisando, muito em particular: Sofia Patrão, do Museu Nacional do Teatro, Luís Santos e Cristina Reis, do Teatro da Cornucópia, João Tuna, com o seu trabalho no TNSJ, Jorge Salavisa e Cecília Folgado, do São Luiz Teatro Municipal, José Frade, enfim, a todos os que pacientemente vão respondendo às nossas constantes – e contumazes – indagações e pedidos.